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Alentejo, um retrato desfocado
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Alentejo, um retrato desfocado
As generalizações, feitas a partir de umas quantas conversas familiares e de outras tantas observações recolhidas em viagens de automóvel, chegam a ser risíveis NUNO FERREIRA SANTOS
Tentativa de retrato de uma região e de um modo de ser que falha por evidente falta de conhecimentos empíricos e académicos do autor, Henrique Raposo.
O polémico livro de Henrique Raposo (n. 1980), cronista do semanário Expresso, incluído na colecção “Retratos” da Fundação Francisco Manuel dos Santos, procura traçar um retrato do Alentejo, mas o que acaba por fazer é apenas um retrato da sua própria família, parte da qual migrou para a Cintura Industrial de Lisboa pelos anos 1960. As generalizações, feitas a partir de umas quantas conversas familiares e de outras tantas observações recolhidas em viagens de automóvel (a propósito da ida a um casamento) numa área geográfica do Alentejo litoral — não muito afastada do triângulo entre Ermidas do Sado, Santiago do Cacém e Cercal —, chegam a ser risíveis.
Há alguns dias, João Miguel Tavares defendia neste jornal que Raposo seguia um modelo anglo-saxónico, que tem em Portugal uma cultora, Maria Filomena Mónica. O problema não é o modelo em si, o problema é que não é “Maria Filomena Mónica” quem quer, pois a Raposo faltam conhecimentos para ensaiar um suposto “retrato” de uma qualquer zona rural, com qualquer que seja o modelo — e não me refiro apenas aos conhecimentos empíricos, que a falha desses é demasiado evidente e difícil de suprir em pouco tempo. Mas umas leituras prévias de alguns trabalhos de Sociologia Rural, de História da Agricultura em Portugal, e de Religião Popular Portuguesa, talvez tivessem disfarçado um pouco a falta de conhecimentos empíricos sobre a ruralidade portuguesa em geral. Para se conhecer o Portugal rural não chega (como é óbvio), a alguém que passou os dias nos arrabaldes de Loures e de Odivelas, ter tido nas férias de há muitos anos “uma vidinha muito etnográfica” numa casa pobre, onde as pessoas se amontoavam nas camas em colchões de folhelho e de palha de centeio, e onde não havia água canalizada e a casa de banho era ao fundo do quintal, depois de se ter de passar pelo poço de onde se tirava a água para os despejos. São várias as afirmações que mostram o desconhecimento do autor sobre a ruralidade portuguesa, pois o que muitas vezes atribui ao Alentejo é comum a Trás-os-Montes ou ao Minho ou às Beiras: a venda, ou a tasca, ser o “epicentro social”, o facto de serem sobretudo os homens a frequentar os cafés, o machismo que ele encontrou no Alentejo não é em nada diferente do que se encontra em Freixo de Espada à Cinta (o Portugal rural é ainda machista, homens e mulheres afinam pelo mesmo diapasão), o facto de no passado se alguém ficasse doente só poderia recorrer a mezinhas e benzeduras… a lista poderia continuar.
Henrique Raposo não nasceu no Alentejo, mas numa família alentejana, e assume que “como todas as famílias de migrantes desenraizados”, também a dele construiu ao longo dos anos “um Alentejo mítico sem qualquer precisão no traço”, um “Alentejo enquanto espaço de fábula negra onde são possíveis pragas de Velho Testamento” como as vagas de gafanhotos africanos que ele “caçava com o mata-moscas” da avó. Então ele propõe-se retratar o Alentejo, retirando-lhe o lado mítico, e para isso vai visitando lugares que lhe são mais ou menos familiares, conversando com os mais velhos, ouvindo histórias, e ao mesmo tempo tirando conclusões (com alguns raciocínios enviesados), conclusões que da sua família, ou da meia dúzia de aldeias que visita, extrapola para o Alentejo todo.
Um dos problemas que parece estar na base de várias conclusões a que Raposo chega prende-se com a “estrutura fundiária” da propriedade. Diga-se, antes de mais, que o tipo de propriedade na zona em que o autor viaja é muito particular. E por várias vezes Raposo refere os “foros”, o “regime de aforamento” que foi instituído em 1887 pela Lei do Fomento Rural, de Oliveira Martins. Ora, esta região, em que a cultura do arroz assumiu grande importância, foi colonizada por gente vinda de fora que alugou parcelas de terreno (de poucos hectares) para explorar economicamente, mas ao mesmo tempo, e quando era necessário, trabalhava para outros proprietários. Estes colonos tinham hortas de onde poderiam obter algum sustento. No resto do Alentejo (o tal sobre o qual Raposo quer tirar conclusões), onde o latifúndio dominava exclusivamente, e que devido aos Planos de Fomento e Campanhas do Trigo produziam apenas cereais, os trabalhadores estavam restringidos a uma ocupação sazonal (sementeiras e ceifas), e não havia maneira de fugir à pobreza. O Alentejo vivia no século XX (até 1974) em quase regime de feudalismo, com verdadeiros servos da gleba pagos em géneros, de facto uma “terra sem lei” (como o autor nota mas por outras razões). Vem isto a propósito de várias considerações a uma suposta falta de vontade de trabalhar e a uma “raiz política” dos malteses, chegando a comparações com o denodo para o trabalho dos “ratinhos” (trabalhadores beirões que desciam sazonalmente ao Alentejo para as ceifas, mas que tinham nas suas terras as leiras e vinhas de onde tiravam o sustento o resto do ano).
Outra das afirmações “estranhas” é apresentar o Alentejo como “um espaço novíssimo” e dizer que “qualquer vila do Norte tem centenas ou milhares de anos” e que no Alentejo não. Ora, é exactamente na área onde Raposo centra o “estudo” que o Alentejo é “novo”, e falamos de Santo André e de Ermidas do Sado. No restante, romanos e árabes fundaram vilas e cidades, e ao longo dos séculos outras foram surgindo.
De entre as várias características (subjectivas) que Raposo atribui aos alentejanos, como a falta de hospitalidade e a desconfiança, há uma que sobressai no livro, que é a falta de solidariedade (o entendimento do voluntariado), e por caminhos travessos acaba por a justificar com “um problema de Santiago e de todas as cidades alentejanas: as pessoas não se identificam com os símbolos da terra”, e para isso recorre ao clube de futebol da terra e faz comparações com o Norte, nomeadamente com o Arouca e o Tondela. Também aqui foi infeliz, por desconhecimento ou esquecimento, e não mencionou (não passaram assim tantos anos) os clubes de futebol de Campo Maior, Portalegre ou Beja, o que deitaria a sua argumentação por terra.
Estranhamente, ou talvez apenas por razões ideológicas, Raposo parece querer tentar desviar a ideia da opressão dos senhores da terra sobre os trabalhadores, e a sua violenta exploração, para um outro tipo de opressão, fazendo afirmações como a que se segue para tentar justificar que o abuso físico sobre as mulheres (e “até a violação”) faziam parte da normalidade alentejana: “Os romances neo-realistas centram-se na opressão económica, mas a verdadeira opressão era sexual e íntima.”
Apesar de não ser um retrato do Alentejo, de estar muito longe disso, Alentejo prometido é um livro bem escrito e desenvolto, pesem expressões como “o odor a haxixe dos eucaliptos” (ou o autor não cheirou haxixe ou não conhece o cheiro dos eucaliptos).
Por José Riço Direitinho
15/03/2016 - 07:56
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