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SELFIES: Cara de retrato
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SELFIES: Cara de retrato
Quando tiram retratos a si próprias ou são retratadas por outros, as pessoas fazem cara de retrato. Seria com certeza mais simples não se fazer cara nenhuma; mas parece ter de haver sempre alguma.
Encontramos regularmente pessoas a tirar retratos a si próprias e aos outros, com umas bengalas. Pouco importa se estão numa repartição, numa regata, ou num restaurante. Fazem todos cara de retrato, como os cegos que usam óculos escuros. Há com certeza alguns casos em que a cara é consciente e deliberada; mas nem sempre uma cara de retrato é uma cara que se faz de propósito. A maior parte das vezes fazemos cara de retrato sem pensar; fazemos cara de alguém que sabe que lhe estão a tirar o retrato, e que está a representar o papel de si própria, embora não conheça os pormenores da peça.
O nosso esforço nota-se. É por isso que quem vê caras em fotografias e as conhece de outros lados as acha exageradas. Se são sérias, são solenes; se são distraídas, são suspeitas; se não são sérias, são cómicas. Apesar de muitas vezes fingirmos o contrário, conseguimos quase sempre identificar a quem pertencem, mesmo que sejam nossas; o seu aspecto não é porém o normal. Parecem-se com pessoas arranjadas para uma ocasião especial. Não se percebe qual possa ser ao certo; é em qualquer caso pouco provável que venham a assistir a essa função. Evidentemente, para quem não conhece quem as faz, as caras de retrato são caras normais. Hoje imaginamos que todos os reis do século XIX dormiam de uniforme, se apoiavam em capitéis, e tomavam banho com uma espada.
Não será então melhor não fazer caras e ser como somos? Há quem ache: a naturalidade é também estimada em fotografia. Muita gente gosta de fotografias de pessoas a olhar para o lado ou entretidas a jogar às cartas, de pessoas insensíveis ao facto de lhes estarem a tirar o retrato. Só à primeira vista no entanto estas fotografias são diferentes das outras. Nada nos garante que essas pessoas não possam estar a fazer cara de pessoa absorta; ou que não estejam voltadas de costas para a câmara com uma deliberação calculada. Mesmo quando não se vê a cara pode estar a fazer-se cara de retrato. Seria com certeza mais simples não se fazer cara nenhuma; mas parece ter de haver sempre alguma.
Esta fatalidade convida à especulação e sugere ciência. Talvez, mesmo entretidos a jogar às cartas, nos ocupe a nossa reputação futura; o retrato é afinal de contas uma das poucas coisas que não nos desagrada que nos seja tirado; ou talvez saber que há uma câmara por perto nos desperte atavismos de impala na savana, e a cara de retrato seja um sinal de perigo iminente; ou a cara de retrato, como uma lápide, comemore o facto de sermos o assunto de alguém; ou, se formos cegos de bengala, de sermos o nosso próprio assunto.
Miguel Tamen
1/4/2016, 0:01
Observador
Encontramos regularmente pessoas a tirar retratos a si próprias e aos outros, com umas bengalas. Pouco importa se estão numa repartição, numa regata, ou num restaurante. Fazem todos cara de retrato, como os cegos que usam óculos escuros. Há com certeza alguns casos em que a cara é consciente e deliberada; mas nem sempre uma cara de retrato é uma cara que se faz de propósito. A maior parte das vezes fazemos cara de retrato sem pensar; fazemos cara de alguém que sabe que lhe estão a tirar o retrato, e que está a representar o papel de si própria, embora não conheça os pormenores da peça.
O nosso esforço nota-se. É por isso que quem vê caras em fotografias e as conhece de outros lados as acha exageradas. Se são sérias, são solenes; se são distraídas, são suspeitas; se não são sérias, são cómicas. Apesar de muitas vezes fingirmos o contrário, conseguimos quase sempre identificar a quem pertencem, mesmo que sejam nossas; o seu aspecto não é porém o normal. Parecem-se com pessoas arranjadas para uma ocasião especial. Não se percebe qual possa ser ao certo; é em qualquer caso pouco provável que venham a assistir a essa função. Evidentemente, para quem não conhece quem as faz, as caras de retrato são caras normais. Hoje imaginamos que todos os reis do século XIX dormiam de uniforme, se apoiavam em capitéis, e tomavam banho com uma espada.
Não será então melhor não fazer caras e ser como somos? Há quem ache: a naturalidade é também estimada em fotografia. Muita gente gosta de fotografias de pessoas a olhar para o lado ou entretidas a jogar às cartas, de pessoas insensíveis ao facto de lhes estarem a tirar o retrato. Só à primeira vista no entanto estas fotografias são diferentes das outras. Nada nos garante que essas pessoas não possam estar a fazer cara de pessoa absorta; ou que não estejam voltadas de costas para a câmara com uma deliberação calculada. Mesmo quando não se vê a cara pode estar a fazer-se cara de retrato. Seria com certeza mais simples não se fazer cara nenhuma; mas parece ter de haver sempre alguma.
Esta fatalidade convida à especulação e sugere ciência. Talvez, mesmo entretidos a jogar às cartas, nos ocupe a nossa reputação futura; o retrato é afinal de contas uma das poucas coisas que não nos desagrada que nos seja tirado; ou talvez saber que há uma câmara por perto nos desperte atavismos de impala na savana, e a cara de retrato seja um sinal de perigo iminente; ou a cara de retrato, como uma lápide, comemore o facto de sermos o assunto de alguém; ou, se formos cegos de bengala, de sermos o nosso próprio assunto.
Miguel Tamen
1/4/2016, 0:01
Observador
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