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A "cultura do descarte" da esquerda

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Mensagem por Admin Sex Abr 01, 2016 10:52 am

No último número da revista que dirijo publicámos uma entrevista com José Juan Ruiz, o economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento, em que, na minha opinião, ele faz uma afirmação surpreendente: "Cerca de 25% da população de qualquer lugar do planeta está hoje indignada e não lhe faltam motivos. Sente-se roubada por umas elites ineptas e, em muitos casos, corruptas." Tem razão esta fração dos cidadãos que se levanta todos os dias sob o signo da ira e do ressentimento? Eu creio que não. Na mesma conversa, o Sr. Ruiz destaca os sucessos evidentes da América Latina. Entre 2000 e 2013, a pobreza foi reduzida de 46% para 28%, começando pelo Chile - que foi o primeiro a acertar nas políticas económicas adequadas - e seguido depois pelo Brasil, agora imerso numa grave crise devido ao conhecimento de casos de corrupção desenfreada durante os mandatos de Lula e da própria Rousseff. Desenvolveu-se no continente uma classe média que abarca 60% da população e cuja influência se está a fazer sentir. Na Argentina, um partido de centro-direita acaba de derrotar o peronismo, nas Honduras, a vice-presidente do Congresso (Lena Gutiérrez) está na cadeia, na Bolívia, Evo Morales perdeu o referendo com o qual pretendia manter-se no poder até 2025. Logo veremos o que acontecerá no Brasil, mas os desenvolvimentos parecem impressionantes. As pessoas já não toleram acriticamente nem os caudilhos nem os comportamentos que pareciam consubstanciais à região. Mas terão realmente motivos para estar indignadas quando nunca ao longo da história viveram tão bem?

Talvez caiba antes a um filósofo responder a isto. Um jovem dos mais reconhecidos em Espanha, Javier Gomá, está correto ao descrever porque o meu país, a certa altura, largou o comboio da modernidade e data esse acontecimento na expulsão dos judeus. "Eram os que emprestavam dinheiro, eram a origem de uma burguesia que tinha conseguido crescer à custa de trabalho, esforço e poupança, que são as pautas que acabam por gerar o progresso. Expulsámo-los e, assim, fomo-nos afastando da ética protestante do trabalho teorizada por Max Weber, para viver apenas dos rendimentos e dos atos heroicos. Mas Gomá sustenta que, apesar de tudo, estamos no melhor momento da história, não apenas no conjunto do mundo como também em Espanha. Chegar a esta conclusão requer apenas uma pergunta muito simples, que vale também para Portugal: se sou mulher, trabalhador, homossexual, incapacitado, doente, dissidente, livre-pensador, membro de uma minoria, idoso, não tenho trabalho ou padeço de algumas das desgraças possíveis, em que época gostaria de ter vivido? Em que época viveria melhor do que na atual? Em nenhuma! Agora somos cidadãos - não súbditos -, com direitos, liberdades e proteção. É claro que há muita gente que sofre, a quem há que prestar cuidados para que não fique na valeta, mas o que foi alcançado é notório, o progresso da humanidade é colossal, evidente. Porque ninguém percebe que estamos no melhor momento da história?

Esta é uma grande questão ainda por esclarecer. Não tenho dúvida de que uma das causas é a dos padrões de vida que alcançámos graças à dimensão de um Estado-Providência, que a crise mostrou ser insustentável mas que, além do mais, é culturalmente nocivo porque acostumou as pessoas a uma dependência do governo absolutamente insana. Outra é a pulsão igualitária, que é sempre muito mais intensa do que a paixão pela liberdade. Hoje, o acesso generalizado às redes sociais, inclusive em lugares menos desenvolvidos, permite comparar o nível de vida dos países, provocando uma ansiedade que em vez de promover o compromisso para mudar a situação doméstica é uma das razões do êxodo e da emigração em busca de uma existência mais gratificante. Séculos atrás, os colonos que viajaram para os Estados Unidos ou, muito mais perto de nós, os espanhóis que emigraram para a Alemanha em meados da década de cinquenta do século passado não procuravam proteção, mas antes oportunidades para ter um futuro mais desanuviado à base de trabalho e de esforço.

Esta hierarquia de valores alterou-se por completo e a esquerda fez aí um mau serviço com a sua determinação em universalizar a saúde pública, a educação e o resto das prestações sociais sabendo que o sistema é incapaz de suportar uma procura infinita a custo zero, que apenas pode conduzir ao seu colapso. Quando o modelo, como está a acontecer, não satisfaz os desejos irresponsavelmente acalentados pelos políticos surge o descontentamento em relação às instituições e aos partidos convencionais, dando asas ao populismo. Na realidade, apenas estamos a colher o que semeámos. Gomá diz que odiar o político que não consegue satisfazer todas as nossas necessidades dá-nos uma certa superioridade moral. Sentimo-nos sempre melhor atirando a culpa para o outro. Mas os políticos não estão aí para nos fazer felizes e tutelar as nossas vidas como faziam os nossos pais. Já somos crescidos, temos de confiar em nós mesmos, devemos assumir as nossas responsabilidades e gerar as nossas próprias expectativas assentes nas nossas atitudes e nos nossos pontos fortes. Num dos seus últimos livros, o Sr. Gomá fala da síndrome do "não fui eu". É uma síndrome tipicamente infantil, que consiste em culpar os outros dos nosso atos falhados, o que é de uma mediocridade moral impressionante... porque deveríamos fazer o contrário: assumir as nossas responsabilidades em vez de pretender que nos deem tudo feito.

Infelizmente, a estratégia dos partidos de esquerda, e sobretudo dos populistas, que arrastaram e radicalizaram os convencionais, é precisamente a de consolidar a cultura generalizada da recriminação e do ressentimento. Consiste em alegar que a economia de mercado e o capitalismo, que é o único sistema que demonstrou resistência e poder para gerar riqueza, é o causador da crise e de todos os problemas a ela anexados. Consiste em reforçar a cultura da dependência e em transmitir a ideia de que é possível alargar artificialmente os direitos sociais, aumentar a carga do Estado-Providência e aumentar a pressão fiscal sobre as pessoas que têm mais êxito sem minar as bases do progresso económico e do crescimento. Não há outra política económica possível que não a de perseguir com determinação a competitividade dos países, reduzindo os custos comparados e estimulando o valor acrescentado. Aumentar ainda mais os gastos sociais, introduzir rendimentos mínimos garantidos de maneira indiscriminada e castigar com mais impostos aqueles que fazem mais e melhor é reforçar a cultura do descarte, mas a cultura do descarte de verdade, não a de que fala erradamente o Papa Francisco. É transmitir às pessoas que não devem preocupar-se com o seu destino, quando têm tantos motivos para o fazer e abrir o caminho aos "salva pátrias" ou caudilhos que tantas experiências nefastas proporcionaram ao longo da história.

01 DE ABRIL DE 2016
00:03
Miguel Angel Belloso
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