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Manipulação e fidelidade
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Manipulação e fidelidade
Num estilo provocatório, incomum no país hipócrita e moralista do princípio dos anos setenta, o famoso professor de direito da família, no cenário austero dos anfiteatros da Faculdade de Direito de Coimbra, delimitava assim o alcance do conceito de "dolo" (em francês...) - "no casamento, engana quem pode". Questionava desta forma a relação complexa entre confiança e ingenuidade, manipulação e erro, emoção e facto. De preocupações semelhantes dá conta o realizador de cinema David Fincher. Os brasileiros traduziram o título do seu último filme para "Garota exemplar". Em Portugal, para o mesmo filme e o mesmo título, a tradução adotada foi "Em parte incerta". Qual das duas opções será mais fiel ao filme de David Fincher, com estreia em 2014, baseado num romance de sucesso de Gillian Flynn e batizado na origem com o nome: " Gone girl"?
"Garota exemplar" evoca uma sonoridade mais próxima do título original e conta, em seu abono, com a alusão à infância prodigiosa de Amy Elliot - mulher de Nick Dunne - objeto, desde a mais tenra idade, da despudorada exploração comercial empreendida, com notável sucesso financeiro, pelos seus próprios pais.
"Em parte incerta" é uma opção onde predominam inclinações semânticas que nos remetem para a tentativa frustrada de descobrir o paradeiro de Amy, depois de misteriosamente desaparecer da sua casa, no dia do 5.º aniversário de um casamento, aparentemente, perfeito. Contudo, a expressão "em parte incerta" amplia excessivamente a indeterminação espacial que o título parece sugerir. Literalmente, "Gone girl" poderia traduzir-se por "A rapariga desaparecida", mas não estaríamos agora a insinuar um sentido mais restritivo do que o proposto no inglês original?
"Em parte incerta" se encontra também o milionário português que alegadamente defraudou milhões de "investidores", em 26 países de vários continentes, segundo o relato do "Jornal de Notícias", na edição de terça-feira.
Rui Salvador prometia lucros de 350% a quem entrasse no seu negócio que parece não ser mais que um reedição do bem conhecido esquema da pirâmide: num estilo copiado das televendas e da retórica evangélica, só os primeiros eram "os escolhidos"... e pagos com os "investimentos" daqueles que conseguissem seduzir. Embora repetido mil vezes, o mesmo esquema continua a iludir pacatos cidadãos na Rússia, na Alemanha, na América ou na vizinha Espanha.
Amy Elliot confessa por fim o seu plano de vingança: a condenação à morte de Nick Dunne - o marido infiel - "culpado" do suposto homicídio da sua mulher desaparecida. E como prova irrefutável de fidelidade, confessa-lhe também o homicídio "real" de um antigo namorado de quem precisou de se desembaraçar para acorrer à salvação do marido, quando vê na televisão o seu apelo desesperado e fingido, implorando o seu regresso. E regressam para sempre... até ao desenrolar da longa ficha técnica da produção. Como o pintor de Herberto Helder que no momento em que começa a pintar o peixe encarnado que vivia no seu aquário, repara que ele "começou a tornar-se negro a partir - digamos - de dentro". E compreende "que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor". E conclui, então, que o peixe "pretendia fazer notar que existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo".
Histórias, enfim, que ocorrem a propósito das guerras de cartazes que animam o estúpido mês de agosto, no arranque da campanha eleitoral. Enquanto certos aprendizes de feiticeiro recorriam aos sorrisos de promoção de pastas dentífricas para testemunhar a radiosa satisfação dos eleitores com os sucessos do Governo, os da Oposição baralhavam os rostos que justamente deviam conferir a força de uma certificação pessoal à realidade autêntica que pretendem resgatar do suposto paraíso governamental. Claro que é grave e até rolaram cabeças. Mas não é aqui que se ganha ou perde a confiança das pessoas. Cônjuge ou eleitor, quem se deixa arrastar por este jogo de aparências sem vislumbrar algum ganho? Como dizia o velho almirante, "o povo é sereno!". Sereno e lúcido.
*PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL
13.08.2015
PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS
Jornal de Notícias
"Garota exemplar" evoca uma sonoridade mais próxima do título original e conta, em seu abono, com a alusão à infância prodigiosa de Amy Elliot - mulher de Nick Dunne - objeto, desde a mais tenra idade, da despudorada exploração comercial empreendida, com notável sucesso financeiro, pelos seus próprios pais.
"Em parte incerta" é uma opção onde predominam inclinações semânticas que nos remetem para a tentativa frustrada de descobrir o paradeiro de Amy, depois de misteriosamente desaparecer da sua casa, no dia do 5.º aniversário de um casamento, aparentemente, perfeito. Contudo, a expressão "em parte incerta" amplia excessivamente a indeterminação espacial que o título parece sugerir. Literalmente, "Gone girl" poderia traduzir-se por "A rapariga desaparecida", mas não estaríamos agora a insinuar um sentido mais restritivo do que o proposto no inglês original?
"Em parte incerta" se encontra também o milionário português que alegadamente defraudou milhões de "investidores", em 26 países de vários continentes, segundo o relato do "Jornal de Notícias", na edição de terça-feira.
Rui Salvador prometia lucros de 350% a quem entrasse no seu negócio que parece não ser mais que um reedição do bem conhecido esquema da pirâmide: num estilo copiado das televendas e da retórica evangélica, só os primeiros eram "os escolhidos"... e pagos com os "investimentos" daqueles que conseguissem seduzir. Embora repetido mil vezes, o mesmo esquema continua a iludir pacatos cidadãos na Rússia, na Alemanha, na América ou na vizinha Espanha.
Amy Elliot confessa por fim o seu plano de vingança: a condenação à morte de Nick Dunne - o marido infiel - "culpado" do suposto homicídio da sua mulher desaparecida. E como prova irrefutável de fidelidade, confessa-lhe também o homicídio "real" de um antigo namorado de quem precisou de se desembaraçar para acorrer à salvação do marido, quando vê na televisão o seu apelo desesperado e fingido, implorando o seu regresso. E regressam para sempre... até ao desenrolar da longa ficha técnica da produção. Como o pintor de Herberto Helder que no momento em que começa a pintar o peixe encarnado que vivia no seu aquário, repara que ele "começou a tornar-se negro a partir - digamos - de dentro". E compreende "que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor". E conclui, então, que o peixe "pretendia fazer notar que existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo".
Histórias, enfim, que ocorrem a propósito das guerras de cartazes que animam o estúpido mês de agosto, no arranque da campanha eleitoral. Enquanto certos aprendizes de feiticeiro recorriam aos sorrisos de promoção de pastas dentífricas para testemunhar a radiosa satisfação dos eleitores com os sucessos do Governo, os da Oposição baralhavam os rostos que justamente deviam conferir a força de uma certificação pessoal à realidade autêntica que pretendem resgatar do suposto paraíso governamental. Claro que é grave e até rolaram cabeças. Mas não é aqui que se ganha ou perde a confiança das pessoas. Cônjuge ou eleitor, quem se deixa arrastar por este jogo de aparências sem vislumbrar algum ganho? Como dizia o velho almirante, "o povo é sereno!". Sereno e lúcido.
*PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL
13.08.2015
PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS
Jornal de Notícias
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