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Realidade e ideologia
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Realidade e ideologia
Em dezembro, Cavaco Silva teorizou sobre a derrota da ideologia face à realidade na governação dos tempos atuais. Na passada segunda-feira, ao ser homenageado no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), voltou à carga com a tese, ao considerar que "a realidade acaba sempre por derrotar a ideologia". Recentemente, Passos Coelho afirmou, do alto da sua postura de primeiro-ministro no exílio, "sou um irritante realista". Assunção Cristas, ancorada no conhecimento empírico adquirido enquanto ministra dos sete ofícios, lá veio na quinta-feira dar o seu contributo à tese anunciando que "na realidade as vacas não voam".
De títulos como estes se fizeram muitas notícias e alguns comentários políticos de Direita na semana que passou. O que é que lhes deu? O que querem dizer e fazer com tanta invocação de realismo? Será que a realidade é de Direita, como João Miguel Tavares - um colunista "realista" das páginas do "Público" - tanto gosta de escrever, e que a ideologia é de Esquerda? Será que Cavaco Silva, Passos Coelho ou Assunção Cristas, por serem de Direita, entre realidade e ideologia escolhem a realidade?
A agenda do pensamento e da ação neoliberal é alimentada por permanentes construções dicotómicas debaixo de um pressuposto mentiroso: a inevitabilidade e a vitória definitiva do capitalismo financeiro globalizado, que nos vem "governando" à escala mundial. Mas a democracia é a busca e o exercício constantes de construção de alternativas. Estas exigem pensamento e ideias articuladas sobre os diversos factos e os sistemas sociais, económicos, culturais (incluindo dimensões morais, éticas...) e políticos na interpretação da sociedade. Os pregadores da Oposição entre realidade e ideologia negam esta interpretação articulada, amputam a realidade para fazerem da sua "realidade" aquilo que uma ideologia estabelece como um horizonte desejável.
Quando Cavaco e Passos falam de "realidade", referem-se a uma sociedade em que a fixação dos salários e das condições de trabalho é deixada à "livre" negociação entre patrões e trabalhadores isolados no individualismo, sem a mediação "irritante" de sindicatos, e sem uma legislação de trabalho que proteja a parte mais fraca da relação de trabalho. Referem-se a uma sociedade em que, não só o trabalho, mas também a educação, a saúde e a proteção na velhice sejam simples mercadorias, que compra quem pode, e não direitos universais e solidários. Referem-se à subjugação a uma Europa dicotómica que está a destruir valores de solidariedade e respeito mútuo entre os povos. Referem-se a uma sociedade supostamente liberal, que apregoa a "livre escolha" e a liberdade de contrato sem reconhecer os constrangimentos à liberdade que resultam das desigualdades, e sem assumir o compromisso coletivo de as combater.
Sob o véu diáfano da "realidade" esconde a Direita a sua ideologia. Sabemos bem porquê. Porque se o debate se centrar na ideologia, em democracia, ela é obrigada a justificar-se em público. Ora, acontece que em público é difícil justificar as desigualdades, os privilégios, as injustiças, a submissão de tudo aos interesses e à ganância de minorias privilegiadas. As pessoas vêm tomando consciência de que a "realidade" da Direita é a de um Mundo, de uma Europa e de um país em que o funcionamento atual das sociedades é muito mais conveniente aos poucos que têm muito e mandam muito, do que a todos os outros.
A Direita fala de ideologia, como o consumidor fala de preferências. Há quem goste de peixe e há quem goste de carne e gostos não se discutem, dizem-nos. Mas ideologias não são gostos ou caprichos. As ideologias discutem-se. As ideologias estão lá, em todos os quadros de valores e em todas as opções políticas adotadas a cada momento e a todos os níveis. Estão lá e podem muito. Até podem distorcer a descrição que é feita da realidade e é com elas que se podem construir múltiplas realidades: de conservação, de retrocesso, de transformação. As ideologias podem ainda mais quando em processo democrático, participado pelos cidadãos e politicamente dinâmico inspiram as políticas.
As ideologias não são para ser escondidas, são para ser debatidas. Há que tirar a Direita da toca.
INVESTIGADOR E PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
MANUEL CARVALHO DA SILVA
29 Maio 2016 às 00:01
Jornal de Notícias
De títulos como estes se fizeram muitas notícias e alguns comentários políticos de Direita na semana que passou. O que é que lhes deu? O que querem dizer e fazer com tanta invocação de realismo? Será que a realidade é de Direita, como João Miguel Tavares - um colunista "realista" das páginas do "Público" - tanto gosta de escrever, e que a ideologia é de Esquerda? Será que Cavaco Silva, Passos Coelho ou Assunção Cristas, por serem de Direita, entre realidade e ideologia escolhem a realidade?
A agenda do pensamento e da ação neoliberal é alimentada por permanentes construções dicotómicas debaixo de um pressuposto mentiroso: a inevitabilidade e a vitória definitiva do capitalismo financeiro globalizado, que nos vem "governando" à escala mundial. Mas a democracia é a busca e o exercício constantes de construção de alternativas. Estas exigem pensamento e ideias articuladas sobre os diversos factos e os sistemas sociais, económicos, culturais (incluindo dimensões morais, éticas...) e políticos na interpretação da sociedade. Os pregadores da Oposição entre realidade e ideologia negam esta interpretação articulada, amputam a realidade para fazerem da sua "realidade" aquilo que uma ideologia estabelece como um horizonte desejável.
Quando Cavaco e Passos falam de "realidade", referem-se a uma sociedade em que a fixação dos salários e das condições de trabalho é deixada à "livre" negociação entre patrões e trabalhadores isolados no individualismo, sem a mediação "irritante" de sindicatos, e sem uma legislação de trabalho que proteja a parte mais fraca da relação de trabalho. Referem-se a uma sociedade em que, não só o trabalho, mas também a educação, a saúde e a proteção na velhice sejam simples mercadorias, que compra quem pode, e não direitos universais e solidários. Referem-se à subjugação a uma Europa dicotómica que está a destruir valores de solidariedade e respeito mútuo entre os povos. Referem-se a uma sociedade supostamente liberal, que apregoa a "livre escolha" e a liberdade de contrato sem reconhecer os constrangimentos à liberdade que resultam das desigualdades, e sem assumir o compromisso coletivo de as combater.
Sob o véu diáfano da "realidade" esconde a Direita a sua ideologia. Sabemos bem porquê. Porque se o debate se centrar na ideologia, em democracia, ela é obrigada a justificar-se em público. Ora, acontece que em público é difícil justificar as desigualdades, os privilégios, as injustiças, a submissão de tudo aos interesses e à ganância de minorias privilegiadas. As pessoas vêm tomando consciência de que a "realidade" da Direita é a de um Mundo, de uma Europa e de um país em que o funcionamento atual das sociedades é muito mais conveniente aos poucos que têm muito e mandam muito, do que a todos os outros.
A Direita fala de ideologia, como o consumidor fala de preferências. Há quem goste de peixe e há quem goste de carne e gostos não se discutem, dizem-nos. Mas ideologias não são gostos ou caprichos. As ideologias discutem-se. As ideologias estão lá, em todos os quadros de valores e em todas as opções políticas adotadas a cada momento e a todos os níveis. Estão lá e podem muito. Até podem distorcer a descrição que é feita da realidade e é com elas que se podem construir múltiplas realidades: de conservação, de retrocesso, de transformação. As ideologias podem ainda mais quando em processo democrático, participado pelos cidadãos e politicamente dinâmico inspiram as políticas.
As ideologias não são para ser escondidas, são para ser debatidas. Há que tirar a Direita da toca.
INVESTIGADOR E PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
MANUEL CARVALHO DA SILVA
29 Maio 2016 às 00:01
Jornal de Notícias
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