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Mensagem por Admin Qua Ago 03, 2016 10:11 am

Era hora de ponta no ginásio, ao final da tarde. O ar condicionado estava no máximo, por causa do calor seco e poluído dos últimos dias, daqueles que irrita a pele do pescoço e faz que os vizinhos jantem de portas abertas. As televisões, ligadas em vários canais, começaram a mostrar todas as mesmas imagens: um palco, tons de azul, milhares de cartazes e uma jovem de vestido vermelho a falar ao microfone. Liguei o rádio do iPod para ouvir o discurso de Chelsea Clinton enquanto me atirava à elíptica. Havia terra nos pedais, porque nestes ginásios de Los Angeles a maioria treina-se com a roupa e os ténis que traz da rua.

Chelsea contou histórias engraçadas sobre a mãe, Hillary Rodham Clinton, que tantos americanos odeiam como se fosse o anticristo de blazer. O momento apanhou-me de surpresa: quando Hillary entrou em palco de branco e começou o discurso mais importante da sua vida - não o melhor - tive um momento de comoção que me fez abandonar a bicicleta e ficar a olhar para a CNN, com os ouvidos na rádio. Foi ali, naquele minuto exato, que se oficializou a nomeação da primeira mulher por um dos dois grandes partidos dos Estados Unidos.

Não foi só o peso da história, nem a memória longínqua de uma conferência na China em 1995 onde Hillary declarou, quase escandalosamente, que os direitos das mulheres eram direitos humanos.
Foi o sentimento de que a salvação vem a caminho.

Passei as semanas anteriores à convenção Democrata a debater com apoiantes dos dois partidos. As opiniões irrompiam em chamas a meio de um jantar, num post do Facebook, entre goles de café no Starbucks. Este é o ano em que pessoas que nunca se interessaram por política têm as certezas mais profundas - e assustadoras na mesma medida. Ouvi de um emigrante português radicado em São José que a China se está a rir da América, e que os mexicanos estão a destruir a economia. Ouvi de uma empresária ultrarreligiosa que Donald Trump será o maior defensor das mulheres que este país já teve. Disse-me uma peruana que chegou aos EUA com um pedido de asilo que só fechando as fronteiras se pode recuperar a grandeza deste país.

Da Europa, vieram as perguntas: como é possível que Trump esteja tão perto nas sondagens? De onde vem esse apoio? Certamente não poderá ganhar?

Percorrendo as ruas de LA, é mais frequente ver graffiti caricaturados ou posters chamando "pendejo" ao candidato Republicano do que chapéus a dizerem "Make America Great Again". A Califórnia é um estado progressista, com uma grande variedade de etnias e ligação histórica ao México - isto era solo mexicano antes da guerra de 1846, que os EUA venceram anexando território.

Mas é nas mansões do Valley que se ouve, ao almoço, a retórica tão bem ensaiada por Donald Trump. Ao discurso do candidato Republicano podem contrapor--se factos: o desemprego está nos 4,9% e a produção industrial a subir; a imigração vinda da América Latina está no nível mais baixo das últimas décadas; Trump usa imigrantes ilegais nos seus projetos imobiliários; Trump levou empresas à falência quatro vezes. Do outro lado, o olhar vidra de forma impenetrável. Entrámos na era pós-factual. Apresentar factos não é só inútil, dá-lhes raiva. Qualquer desmontagem da retórica vazia deste candidato - para não falar no racismo, machismo e outros - ismos insofríveis - é dissolvida no ácido que intoxicou os seus apoiantes. São desculpas inventadas pelos media, é uma cabala do sistema, são os corruptos de Washington. Os Trumpistas estão muito entusiasmados com o fim do politicamente correto. Porque o seu líder não apresenta vestígios de vergonha ou decoro, eles também perderam o filtro, e usam esta nova liberdade para dizerem o que querem a quem lhes apetece, não autorizando retribuição. Em termos práticos, é uma orgia de insultos a outras raças, credos e nacionalidades justificada pelo modo como Trump o faz publicamente. Respondem às críticas com ameaças de violência e perseguição verbal. Há elementos da "direita alternativa" a prometerem ir de porta-a-porta pedir satisfações a quem não apoiou Trump na campanha.

Acabei o treino antes do fim do discurso de Hillary. Fui para o balneário com o iPod embrulhado no cabelo, para ouvir o momento histórico até ao fim. Salvação. O meu futuro na América depende desta mulher, com os seus escândalos, o apoio à guerra no Iraque, as palestras a bancos duvidosos, as ligações à Arábia Saudita e as escapadas de Bill Clinton, que lhe tiraram anos de vida. Isto não é uma escolha entre dois partidos. É o caminho da normalidade ou o precipício da aberração. E eu, como milhões de residentes nos EUA que não podem votar, assisto atónita à caminhada penhasco acima, em direção à queda livre.

03 DE AGOSTO DE 2016
00:00
Ana Rita Guerra
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