Um burro calado é um doutor

O que não falta por aí é sabichonismo, e também não faltam sítios para o pôr em prática

A adolescência é tão fértil em hormonas e borbulhas quanto em opiniões e certezas. Ora há quem na idade adulta sossegue as hormonas e vença as borbulhas, mas se mantenha muito dado a opiniões e certezas, mergulhado num sabichonismo que, em vez de se concretizar em manhãs de nevoeiro (como outra doença nossa, o sebastianismo), faz nevoeiro ou tolda as vistas. A esses calhava bem atentarem na frase que um pai que eu conheço costumava atirar ao filho adolescente quando o apanhava, naqueles recorrentes ímpetos que precedem a idade adulta, com excesso de certezas e num tropel de opiniões. Dizia ele, o pai: "Olha lá, que sabes tu disso? Olha que um burro calado é um doutor." O filho, claro, não apreciava o remoque, e, com a energia violenta que tudo tem na adolescência, ficava a remoer indignações, certíssimo das suas opiniões.

Mas o tempo passa, e, ao que julgo saber, o filho hoje olha para trás e vê que o pai - nisso como noutras coisas - tinha inteira razão, e muitas vezes apetece-lhe atirar o remoque do burro a quem navega em matéria de certezas e opiniões em eterna adolescência. O que não falta por aí é sabichonismo, e também não faltam sítios para o pôr em prática, até porque parece que quem não tem opinião - com frequência posta às cavalitas de certezas rápidas e fáceis - não existe. E isto para não falar noutra coisa diferente da opinião - essa a merecer remoque diferente, invocando o burro ou outros animais -, que consiste em cuspir azedume, disparates, ofensas, ajustes de contas ou frustrações, quase sempre a coberto do confortável anonimato, em blogues, comentários online ou outros herdeiros do antigo escarrador. Democracia, claro está, e está muito bem, que a democracia sempre foi o menos mau dos regimes, embora terreno de excessos.

Há todo o tipo de opinadores, sendo que, quanto aos que opinam sobre todos os temas, estou como o outro: gosto muito, excepto quando percebo do assunto. Quando percebo já gosto menos vezes, e constato que se opina muito no vazio. Democracia, claro está, e está muito bem, mas vem-me à ideia o pai que falava no burro. Ultimamente, e só para dar uns exemplos ao correr da pena, foi ver tantos (quase sempre os mesmos - sejam conhecidos, sejam profissionais, comuns ou anónimos) a opinar sobre crises políticas, ébola, legionella, acidentes aéreos, o mistério do Natal, a comissão parlamentar de inquérito e, claro, a quinta-essência da opinião e das certezas, o "caso Sócrates". E não só se opina muito como se pede muito a opinião. A mim, talvez porque ando pelos tribunais há anos, também me pedem opinião sobre o "caso". Pois, não tenho e não dou. Não sei e não conheço. E nem sequer digo: tenho opinião, mas esperarei ver a justiça a funcionar. Não digo que tenho porque não tenho, e não digo que espero ver a justiça a funcionar porque isso não é uma opinião, é um desejo. Nesse "caso", como em todos os outros, espero para ver. Burro e calado. E apesar de até saber várias coisas sobre a justiça.

Advogado

Escreve quinzenalmente ao sábado

Por Rui Patrício
publicado em 10 Jan 2015 - 08:00
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